Últimos dias do Irmão Lourenço

Com razão se preocupava Saint-Hilaire com o destino do Estabelecimento. O mesmo acontecia ao próprio fundador que, um dia, a 20 de janeiro de 1806, partiu do Caraça para Mariana, a fim de consultlar o bispo Dom Frei Cipriano e fazer o seu testamento.

Já 5 anos atrás, em 1801, querendo garantir os frutos de seu trabalho, enviara ao Rei uma súplica para que viessem de Portugal os Frades Varantojos para cuidar do Santuário. O pedido foi renovado no ano seguinte, quando se enviou a planta do edifício. Para examinar in loco a petição, apareceram no Caraça o Governador e o Capitão-Geral da Capitania de Minas Gerais e depois o Ouvidor da Comarca de Sabará. Não obstante as minuciosas informações que deram, o resultado não foi satisfatório pois estavam ainda em vigor as leis de 1732 e outras semelhantes, proibindo a permanência, na Capitania, de corporações religiosas.

Por isto, em seu testamento de 1806, depois de invocar a SSma. Trindade e a Virgem Maria, declara: "Sou senhor e possuidor de uma sesmaria de terras... sitas na Serra do Caraça... onde a minha custa e com esmola dos fiéis ( 1 ), edifiquei uma capela com o título de Nossa Senhora Mãe dos Homens e São Francisco das Chagas com todos os seus pertencentes, ornamento, imagens, alfaias, santuário de várias relíquias, um corpo de São Pio, mártir; de que e de todos os meus bens que me pertencem fiz oferecimento por mim a Sua Alteza Real para estabelecimento de um hospício de missionários... Declaro que minha vontade sempre foi e é de que todos os referidos meus bens fossem para estabelecimento e residência de missionários, e não podendo conseguir-se para este fim, que, em tal caso, servisse para seminário de meninos, onde aprendessem as primeiras letras e mais artes, ciências e línguas". ( 2 )

Estes desejos só seriam realizados após a morte. Até lá as angústias do fundador iriam aumentando com a fraqueza de seu corpo e a deserção ou morte de seus irmãos de hábito. Saint-Hilaire sentiu esta triste realidade ao registrar entre suas anotações: "Eu contemplava aquele ancião, encostado na balaustrada do terraço de seu mosteiro. Uma palmeira o cobria com sua sombra. A cabeça estava inclinada sobre o peito, mas os olhos tinham conservado o fogo que os animava outrora. Um bastão de jacarandá, mais negro que o ébano, ajudavo-o a suster o peso do corpo. Parecia absorvido em profundas reflexões, e talvez consigo mesmo acusasse menos a rapidez do tempo que a inconstância dos homens..."

Diz a "Velha Crônica" do Caraça:

"... no fim de sua vida, ficou cego o Irmão, deram-lhe um tutor que o maltratou. Tinha um escravo por nome Mamede; quando lhe trazia de comer, tanto comia o Irmão como o escravo, e mais este que tinha vista. Disse-me o Vigário Francisco Xavier que, quando ia à Serra, lhe levava bolinhos e pães-de-ló. Disse-lhe o Irmão Lourenço: "foi muito pouco; quando cá tornar, traga mais". Também me disse o dito Vigário que o Irmão Lourenço morava onde está hoje a Capela de Oração."

Nesta cela - mais tarde transformada em Sala de Oração dos padres, perto do claustro - nesta cela iria o Irmão Lourenço entregar sua bela alma a Deus. Partiria purificado pelos sofrimentos e, nos últimos instantes da vida, aliviado das dores do corpo e das angústias da alma. É que numa das terríveis noites de insônia, cheas de tristezas e gemidos, a Virgem Mãe de Deus e Mãe dos Homens - diz a tradição - lhe apareceu para o consolar. Foi o próprio Irmão Lourenço quem revelou o fato ao Cônego Inocêncio, vindo de Mariana para o assistir nos últimos momentos. Disse-lhe o Irmão:

"Ah! meu padre, eu tudo vos direi, porque sois o meu confessor. Enchia-me de tristeza o pensamento do abandono, em que ia ficar o nosso Santuário, depois da minha morte... Mas Nossa Senhora quis dar-me certeza de que ela não abandonará a sua obra... que, em breve, virão padres devotados à salvação do povo e à educação da mocidade. Agora estou contente e vou morrer tranqüilo com esta esperança".

Poucos dias depois, "aos 27 de outubro de 1819, faleceu da vida presente, confortado com os Sacramentos da Igreja, o Irmão Lourenço de Nossa Senhora", diz o Livro de Óbitos de Catas Altas.

Foi sepultado dentro da igreja, que tantos suores lhe custara e onde tanto rezara pedindo a Deus a realização de seus sonhos."Jaz na sepultura entre a janela da credência e a janela que deita para o saguão, mais para esta do que para aquela". ( 3 )

Com que idade morreu o Irmão Lourenço?

Segundo Saint-Hilaire, teria morrido com 95 anos. Von Martius, em 1818, diz que o Irmão tinha mais de cem anos. Outros, porém, querem dar-lhe pouco mais de 70 anos, como o padre Sarneel. ( 4 )

Penso que este fato nunca será bem esclarecido, porque até hoje os arquivos não nos disseram exatamente qual o nome civil do Irmão Lourenço, e nem em que dia nasceu aquele que consagrou 50 anos de sua vida missionária ao Santuário de Nossa Senhora Mãe dos Homens da Serra do Caraça.


( 1 ) - " Já em março de 1790, funcionava na Serra do Caraça uma pia confraria sob o título da Senhora Mãe dos Homens, fundada pelo Irmão Lourenço. Em dezoito velhos cadernos do arquivo do Caraça, acham-se perpetuamente consignados com letras bela e fortemente escritas a tinta, os nomes humildes de 23.226 irmãos devotos que se alistaram de 1791 a 1885 na venerável Irmandade da Senhora Mãe dos Homens. São 23.226 benfeitores que, pagando anualmente a sua modesta prestação contribuíram para a grandeza do Caraça.
( 2 ) - SARNELIUS, ob. cit. pág. 259.
( 3 ) - Anotação feita pelo Pe. Viçoso, a respeito do lenterro do Pe. João Moreira Garcez, falecido em 1839 e colocado "na mesma sepultura emq ue jaziam os ossos do Irmão Lourenço", apud Registro de Óbitos. MS, no arquivo do Caraça.
( 4 ) - SARNELIUS - ob. cit. págs. 270 e 271. Baseando-se em Uma Vida, do Ir. Lourenço, escrita em 1861, cita até a data do nascimento: 5 de janeiro de 1747.


ZICO, Pe. José Tobias - Caraça - Peregrinação, Cultura e Turismo, págs. 15 a 17, Ed. São Vicente,
Belo Horizonte, 1976.

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